Algumas reflexões sobre o “documento/monumento”, de Jacques Le Goff

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No último encontro do grupo de estudos, ocorrido no dia 05 de setembro, discutimos o texto “Documento-monumento”, do historiador Jacques Le Goff. O texto, um dos capítulos do livro “História e Memória”, de 1988, é uma reflexão sobre o conceito de história. Do debate, ficaram muitas considerações e inquietações e, para não perdermos o fio da memória, aí vai um pequeno registro com pontos importantes do texto e da roda de conversa.

Sobre o conceito de documento/monumento

Antes de tudo, para Le Goff, a história – forma científica da memória coletiva – é resultado de uma construção, sendo que os materiais que a imortalizam são o documento e o monumento. Para o autor, “o que sobrevive não é o conjunto daquilo que existiu no passado, mas uma escolha efetuada quer pelas forças que operam no desenvolvimento temporal do mundo e da humanidade, quer pelos que se dedicam à ciência do passado e do tempo que passa, os historiadores. Estes materiais da memória podem apresentar-se sob duas formas principais: os monumentos, herança do passado, e os documentos, escolha do historiador” (p.535, 1996).

Ao longo do texto, Le Goff desenvolve uma reflexão sobre estes dois tipos de materiais, seus usos e sua legitimidade. Em princípio, o monumento era visto como um material historiográfico de valor contestável, sendo caracterizado pelo “poder de perpetuação, voluntária ou involuntária, das sociedades históricas” (p.536, 1996) por meio de testemunhos, em sua maioria não escritos. Já o documento, testemunho essencialmente escrito, possuía mais legitimidade por ser relacionado à “neutralidade”, o que o consolidou, inclusive, como prova jurídica ao longo dos tempos. Para Le Goff, o documento que, para a escola histórica positivista do fim do século XIX e do início do século XX, será o fundamento do fato histórico, ainda que resulte da escolha, de uma decisão do historiador, parece apresentar-se por si mesmo como prova histórica. A sua objetividade parece opor-se à intencionalidade do monumento” (p.536, 1996). A diferença entre estes dois materiais, parece ser, assim, a dicotomia entre o testemunho “parcial” e o “imparcial”.

No entanto, posteriormente, Le Goff desconstrói esta falsa dicotomia, afirmando que todo documento é monumento, pois todo documento é fruto de escolhas e intenções de quem o elabora, sendo assim um ponto de vista parcial da história. Para ele, “o documento não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de forças que aí detinham o poder. Só a análise do documento enquanto monumento permite à memória coletiva recuperá-lo e ao historiador usá-lo cientificamente, isto é, com pleno conhecimento de causa(p.545, 1996). Mais do que parcial, Le Goff escreve que, de alguma forma, todo documento é uma mentira, já que é resultado de uma “montagem, consciente ou inconsciente, da história, da época, da sociedade que o produziram, mas também das épocas sucessivas durante as quais continuou a viver, talvez esquecido, durante as quais continuou a ser manipulado, ainda que pelo silêncio. O documento é uma coisa que fica, que dura, e o testemunho, o ensinamento (para evocar a etimologia) que ele traz devem ser em primeiro lugar analisados desmistificando-lhe o seu significado aparente. O documento é monumento. Resulta do esforço das sociedades históricas para impor ao futuro – voluntária ou involuntariamente – determinada imagem de si próprias. No limite, não existe um documento-verdade. Todo o documento é mentira. Cabe ao historiador não fazer o papel de ingênuo” (p.547-548, 1996).

Le Goff escreve, ainda, sobre a importância de valorizarmos todo material histórico como documento, independente do registro escrito. Daí, levar em consideração, “os vestígios da cultura material, os objetos coleção (cf. pesos e medidas, moeda), os tipos de habitação, a paisagem, os fósseis, (cf. fóssil) e, em particular, os restos ósseos dos animais e dos homens (cf. animal, homo).”

Uma primeira pergunta: qual foi o impacto deste texto no período em que foi lançado? Foi encarado como uma provocação aos historiadores? Se o documento é mentira, o que é verdade então? Existem várias verdades.

As reflexões em torno do texto

A partir desta apresentação sucinta do conceito documento/monumento, pode-se dizer que o historiador é, antes de tudo, sujeito histórico de seu tempo. E seus documentos são construções de determinados sujeitos históricos, estes também construções históricas de determinado campo social. Todo documento/monumento é, assim, fruto da intencionalidade – mais ou menos consciente – de quem o estuda ou produz.

Estas reflexões nos remeteram a outras obras que discutem a produção da história e dos fatos científicos, como O queijo e os vermes, de Carlo Ginzburg; o conceito de “história dos vencidos”, de Walter Benjamin; o debate sobre objetividade e não-neutralidade nas ciências sociais, de Max Weber;  e o debate sobre o filme como documento, de Marc Ferro. Aí, chegamos em nosso campo de estudo: o cinema como material da história, o cinema enquanto documento/monumento.

O filme é um documento/monumento.

O filme como um documento e a história como uma narrativa e vice-versa. São todos discursos acerca de um fato, uma representação, um recorte da realidade. Todos estão articulando imaginários e perspectivas sobre determinados contextos e questões. O filme é um discurso sobre alguma coisa e sobre si mesmo e fala de si, das condições em que foi feito e de seu autor/realizador. Todo filme é, de alguma forma, baseado em fatos reais, porque senão não haveria entendimento e reconhecimento por parte do espectador. Neste sentido, para o espectador, o filme tem que comunicar por si só. Ao final da projeção, o que as pessoas têm em comum é o filme que acabaram de assistir coletivamente; a recepção ocorre de acordo com as bagagens individuais de cada espectador. Assim, a historiografia que temos acesso influencia nossa leitura dos filmes e nossos repertórios influenciam muito nossa recepção. Por exemplo, o filme Elefante branco, do Pablo Trapero (2012), no cinema é uma catarse. Depois, no entanto, lendo sobre o contexto em que foi feito, podemos refazer o percurso sobre o filme. Qual seria nossa impressão com outra bagagem histórica?

Sobre a análise do filme

Alguns questionamentos surgiram: a análise do filme sem uma relação com seu contexto histórico é superficial? Tudo depende do método de análise, de escolhas do pesquisador. Aonde a análise quer chegar? Quer partir do ponto de vista do espectador, este que supostamente não tem mais informações sobre o “extra-campo”, ou quer ir para além do filme em si? O que o filme diz por si só? O que ele não diz? Como convergir a análise do filme com seu contexto? Temos que fazer recortes ao analisar um filme. Recorte de método, inclusive.

A historiografia do cinema

Como selecionamos o que é importante e o que não é na história do cinema? Como construímos os currículos das escolas de cinema? A história do Brasil que estudamos na escola sempre está em função da colônia. Que historiografia estamos aplicando para os estudos sobre o cinema? Qual o nosso corpus? Que conceito de história está por trás? Qual o lugar do cinema da América Latina nestes estudos? O cinema da América Latina sempre foi retratado como um apêndice. Qual o instrumental teórico que nós temos para pensar o nosso cinema?

Desse modo, o grupo se pergunta: que história contar dos cinemas da América Latina e, portanto, qual o conceito de história que está por trás, visto que pressupomos que este tipo de narrativa não apenas pode ser feita como é relevante fazê-la.

A experiência cinematográfica

Como pesquisadores, dissecamos nosso objeto e perdemos o impacto, a impressão “mais subjetiva” do deslumbramento com a obra. Ao analisar um filme, devemos desconfiar da obra e lê-lo como um discurso, mas também devemos desconfiar de nós mesmos e aproveitar as inseguranças como elemento de aprofundamento intelectual. Como leitores de nós mesmos devemos ser mais seguros e assertivos ou mais inseguros e abertos aos imprevistos?

Alguns filmes são monumentais, se transformam em fetiche. De qualquer maneira, na sala escura, cinema é acima de tudo um espetáculo, independente da realidade que o cineasta propõe a mostrar. Como recuperar o impacto do filme em palavras?

Os outros materiais históricos

A fotografia também é material histórico, assim como também é manipulação, construção, mentira. É um recorte imagético da história. Além do texto, do filme e da fotografia, é importante ressaltar a importância da memória do corpo, das tradições populares e da história oral como materiais históricos. Como exemplo podemos citar as comunidades indígenas, que têm na história oral e na representação corporal suas principais fontes de história. Neste sentido, o que representa o Museu como espaço de memória, levando-se em consideração os diversos povos?

Os maracatus rurais, criados por cortadores de cana do nordeste, fazem com que em determinada época do ano eles se transformem em personagens, encenando nas comunidades em que vivem. O maracatu rural, o baque solto e o cavalo marinho, todas tradições históricas do nordeste brasileiro, são monumentos culturais vivos, da cultura popular, que estão vivas. A representação destas tradições não está necessariamente nos museus, mas em seus corpos, em suas falas, na interação entre as pessoas. Como podemos retratar isso sem uma contextualização esquemática, querendo explicar tudo, significar tudo? Além disso, estas tradições do meio rural não podem ser lidas de um ponto de vista que as mumifique, pois estas não estão estagnadas no tempo, são dinâmicas, híbridas, sendo influenciadas por outros elementos e espaços, como o universo urbano. Para exemplificar, podemos citar as fantasias dos caboclos de lança, do maracatu rural, que incorporam em seus adereços imagens do cinema brasileiro, como do filme Tropa de Elite.

A polissemia dos documentos/monumentos

Assim, os textos, as ruínas, os artefatos, as atividades humanas são todas fontes de história. Os seres humanos produzem documentos/monumentos todo o tempo. Devemos prestar atenção ao cotejamento dos documentos e não fazer uma leitura positivista: “o documento já diz tudo”. Sempre ler um texto do lado de quem o produz, a partir da interpretação do historiador, já que todo documento é resultado de uma interpretação e fruto de outros documentos produzidos. Assim, os pesquisadores devem buscar diversas fontes de interpretação. Os estudos sobre o documento cinema funcionam da mesma forma: são permeados de conflitos, pontos de vistas, cotejamentos. O sentido do filme se dá por meio de três fatores: o filme, o público e sua compreensão e a mediação de quem o interpreta. Importante prestar atenção nas múltiplas perspectivas e re-narrativas:

Mais citações que surgiram ao longo do debate

Livros: Os jovens infelizes, de Pasolini; As potências do falso, de Deleuze; Platão e os Sofistas; conceito de “campo social”, de Bourdieu; O cemitério de praga, de Umberto Eco (sobre a divulgação de documentos falsos do protocolo de Sião); Hans Belting (sobre o ponto de vista); A objetividade do conhecimento nas Ciências Sociais,  de Max Weber; os textos de Raimon Panikkar (que abordam mitos).

Filmes: O fim da história, de Manuel de Oliveira (reflexão sobre o monumento); A sombra de um homem (Hanan Abdalla, filme egípcio para fazermos uma reflexão sobre a alteridade); Maranhão 66, documentário de Glauber Rocha (o tiro que saiu pela culatra: Glauber foi contratado para fazer um documento sobre a posse de Sarney e acabou fazendo um documentário crítico sobre a política coronelista no nordeste brasileiro); Cidadão Kane, de Orson Welles (e a multiplicidade de perspectivas); os filmes de Sanjinés (sobre os indígenas bolivianos); os mockumentaries (falsos documentários).

Rádio: a verdade construída por Orson Welles ao anunciar, numa transmissão radiofônica, a invasão do planeta Terra por alienígenas, o que levou a um pânico coletivo nos Estados Unidos, em 1938.

Referência bibliográfica para o debate:

LE GOFF, Jacques. História e Memória. 4.ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1996.
Disponível aqui.